Quantas vezes ainda vamos empurrar com a barriga a urgência de transformar os nossos sistemas alimentares? Em pleno século XXI, com um planeta a fervilhar – literal e metaforicamente – continuamos a alimentar os nossos municípios com políticas públicas obsoletas, menus escolares desnutridos de visão e contratos públicos em regime de fast food administrativo. A pergunta é direta: quando é que os municípios vão assumir o papel de líderes na construção de sistemas alimentares sustentáveis?
Os números não mentem. Um terço das emissões de gases com efeito de estufa têm origem no sistema alimentar global. E se as cidades consomem, as cidades também podem se transformar. O poder da contratação pública está nas nossas mãos – e os municípios, particularmente os que gerem milhares de refeições por dia, têm nas suas decisões uma alavanca extraordinária para mudar o rumo do território, da saúde pública, da economia local e da justiça social.
Alimentar melhor não é um luxo — é uma urgência
As cantinas escolares, hospitalares, universitárias e sociais são muito mais do que espaços de distribuição de calorias. São infraestruturas de impacto massivo na saúde, na economia e na ecologia local. Hoje, a restauração coletiva é um dos principais campos de batalha pela sustentabilidade.
O que está em causa não é apenas “o que comemos”, mas “como, onde e por quem” é produzido. Está na altura de colocar critérios ambientais e sociais no centro da decisão pública. Já não chega escolher pelo preço mais baixo. Isso é miopia institucional. A nova bitola é esta: proximidade, sazonalidade, modo de produção biológico ou integrado, respeito pela biodiversidade, equidade no acesso ao mercado.
Municípios: assumam a liderança pelo exemplo
A cidade do Porto já ensaiou passos corajosos — com a introdução de preços mínimos garantidos nos concursos públicos, garantindo dignidade a quem produz e qualidade a quem consome. Torres Vedras, por seu lado, ensina-nos a medir a frescura dos alimentos em quilómetros, que permitiram aumentar de forma significativa o consumo de produtos locais e biológicos. São casos inspiradores, mas ainda isolados.
É preciso sistematizar, escalar e institucionalizar. Que todos os municípios adotem cadernos de encargos com 75% do peso atribuído a critérios de sustentabilidade. Que a origem local dos produtos, o modo de produção biológico, as certificações DOP e IGP, a diversidade genética e a rastreabilidade sejam o novo normal. Isso é fazer política alimentar séria. Isso é fazer futuro com responsabilidade.
Os desafios existem, mas são superáveis
Sim, há barreiras: operadores que desconhecem os produtores biológicos locais, dificuldades logísticas, receios sobre custos e disponibilidade. Mas também há soluções. O projeto-piloto proposto no relatório mostra o caminho: testar, medir, ajustar. Criar fóruns de diálogo permanentes entre contratantes, operadores, produtores e distribuidores. Apoiar tecnicamente os agricultores na transição para modos de produção mais sustentáveis. Planear ementas a longo prazo, garantindo previsibilidade e viabilidade.
E sobretudo, dar flexibilidade aos contratos para responder às variações naturais da agricultura. Porque a sustentabilidade não é uma camisa de forças — é uma dança entre a natureza e as nossas decisões.
A alimentação como eixo de soberania local
Este é também um tema de soberania. Não a soberania ideológica ou romântica, mas a soberania prática, real e territorial. Um município que sabe de onde vem o seu alimento, que conhece os seus produtores, que garante escoamento justo e regular, que valoriza os seus resíduos alimentares e os reintegra num ciclo local — esse é um município resiliente. É esse o tipo de soberania que queremos ver florescer: uma soberania alimentar democrática, justa, ecológica e economicamente inteligente.
E não há futuro para a neutralidade carbónica municipal sem rever o sistema alimentar. Não é nos carros elétricos nem nas ciclovias que se resolve tudo — é também no prato. No que servimos às crianças todos os dias. No que compramos com os nossos impostos. No que rejeitamos nas opções sem visão.
Um apelo direto aos decisores municipais
Dirijo-me agora aos presidentes de câmara, vereadores da educação, do ambiente, das compras públicas: parem de tratar a alimentação como assunto menor. Comecem a usá-la como ferramenta estratégica de desenvolvimento sustentável.
E a quem argumenta que “não temos capacidade técnica” ou “não há produtores suficientes”, respondo: é exatamente para isso que existem estratégias — para mobilizar recursos, para capacitar, para planear com base em evidência, para inspirar transformação. Se esperarmos que tudo esteja perfeito, nunca saímos do ponto zero.
Aliás, se há setor que já deu provas da sua adaptabilidade e criatividade, é o agroalimentar. Mas precisa de sinais claros, de compromissos firmes e de contratos justos.
Educar pelo prato, comunicar com sabor
A alimentação coletiva é também um meio de educação ambiental. É no prato que se treinam hábitos, que se modela o gosto, que se desperta a consciência. Menu é política. Ementa é estratégia. Comunicar de forma clara os menus e os seus impactos ambientais é criar cultura e cidadania alimentar.
Uma sopa 100% BIO semanal? Um prato DOP quinzenal? Uma peça de fruta local e sazonal todos os dias? Sim, é possível. E é desejável. E é urgente.
Conclusão: que prato queremos servir ao futuro?
Chegámos ao ponto em que continuar como estamos é uma escolha — e é uma má escolha. A transformação dos sistemas alimentares começa no terreno, nos municípios, nos concursos públicos, nas ementas escolares. Numa colaboração com Good Food Hubs do Porto foi proposto um roteiro sólido, testado, ambicioso e pragmático. Falta agora a coragem política e o compromisso executivo de os municípios avançarem, para uma necessidade, não só importante para a sustentabilidade como determinante para a segurança alimentar.
É tempo de fazer dos nossos municípios líderes na transição agroecológica. Porque alimentar bem é governar melhor.

